A brincadeira entre crianças de idades diferentes
Fonte: The Special Value of Children's Age-Mixed Play, de Peter Gray, 2007
American Journal of Play, volume 3, number 4
Jan 2023
Fonte: The Special Value of Children's Age-Mixed Play, de Peter Gray, 2007
American Journal of Play, volume 3, number 4
Jan 2023
Neste artigo, o reconhecido especialista Peter Gray põe a brincadeira entre crianças de idades diferentes no contexto da evolução histórica e cultural do ser humano. O que se perde ao separar as crianças por idade para brincar e para aprender?
Introdução
As características do ser humano foram definidas por milénios de evolução, e durante 99 por cento desse tempo, fomos caçadores-recolectores. Teremos vivido em bandos relativamente pequenos e com taxas de natalidade baixas por falta de recursos, e por isso cada bando teria poucas crianças e com idades espaçadas entre si; não havia crianças da mesma idade e por isso as interações eram necessariamente entre crianças de idades diferentes. Foi essencialmente neste período da nossa evolução que a seleção natural teve tempo de dar forma aos mecanismos cerebrais que definem a atividade de brincar tal como a conhecemos hoje, o que sugere que estamos biológica e naturalmente adaptados para brincar com crianças de idades diferentes durante a infância.
Só há cerca de dez mil anos (um piscar de olhos na evolução humana) é que o estabelecimento da agricultura passou a garantir maior abundância de alimento e isso permitiu que os nascimentos ocorressem com mais frequência, aumentando a probabilidade de existirem várias crianças da mesma idade na mesma população. Mas mesmo havendo essa possibilidade, a brincadeira estruturada por idades não era comum. Segundo estudos antropológicos, o modo ancestral de brincar nas sociedades tradicionais envolve tipicamente crianças de idades diferentes. Na maioria destas sociedades, os irmãos mais velhos cuidam dos mais novos, e isso significa incluí-los nas suas brincadeiras. O modelo predominante hoje, em que as crianças são frequentemente agrupadas e separadas por idades, é por isso uma aquisição recente para o ser humano.
Apesar da naturalidade do ato de brincar com crianças de idades diferentes, a ciência contemporânea (ainda) não se deteve a estudar em grande detalhe essas dinâmicas, e por isso não há muitos estudos publicados sobre esta temática. Este artigo de Peter Gray vem rever as conclusões desses estudos, corroboradas pelas suas próprias observações.
Os benefícios da brincadeira mista nas crianças mais novas
Peter Gray identifica três benefícios para a brincadeira mista nas crianças mais novas: permite-lhes participar em atividades que não poderiam fazer sozinhas ou com crianças da mesma idade e aprender com essas atividades; observar e copiar modelos de atividades mais avançadas do que as suas próprias; e receber apoio emocional e cuidados para além dos que as crianças da mesma idade poderiam dar.
O envolvimento das crianças mais velhas com as mais novas
Nos anos 1930, o psicólogo russo Lev Vigotsky cunhou o termo “zona de desenvolvimento proximal” para se referir às atividades que uma criança não consegue fazer sozinha nem com outras crianças com as mesmas capacidades mas que consegue fazer com outros que são mais capazes. Ele sugeriu que as crianças desenvolvem novas competências quando colaboram com outros na sua zona de desenvolvimento proximal, conceito que foi depois reforçado por outros autores. Isso faz das crianças mais velhas parceiros valiosos para as mais novas, porque são quem tem interesses, idades, níveis de energia e tempo disponível mais próximos dos seus e que, por isso, se conseguem manter durante mais tempo na sua zona de desenvolvimento proximal.
Por exemplo, vários estudos referem que, quando há crianças de várias idades, as mais velhas criam condições para as mais novas participarem, e que até crianças de dois e três anos, que hoje são consideradas demasiado novas para a brincadeira social, participam em atividades sociais com naturalidade. Observa-se menos brincadeira paralela nestas idades em grupos de idades mistas, o que sugere que o conceito de “brincadeira paralela” poderá ser uma consequência artificial do nosso modo de organizar as crianças por idades nos vários contextos. Observa-se que as crianças mais velhas estruturam as atividades e usam pistas verbais e não verbais para que os que são dois ou três anos mais novos consigam participar, e isso permite às crianças pequenas integrar brincadeiras colaborativas com facilidade, oportunidades que não seriam criadas entre crianças pequenas da mesma idade. Através destas interações, as crianças mais pequenas adquirem, não só destreza física e motora e conhecimento sobre a sua cultura, mas também competências sociais e mesmo competências curriculares.
Com efeito, as crianças mais velhas que já sabem ler, escrever e contar aplicam frequentemente esses conceitos nas suas brincadeiras. E quando expostas a essas brincadeiras, as mais novas vão incorporando também esses conceitos e ganham sensibilidade e conhecimento nessas áreas. Os mais velhos expõem os mais novos a conhecimentos formais de uma forma natural e lúdica, criando associações positivas com os conhecimentos que mais tarde serão alvo de aprendizagem curricular.
Numa experiência, os investigadores relataram que as crianças do pré-escolar que interagiam com crianças do primeiro ciclo usavam cerca de quatro vezes mais a “leitura” e seis vezes mais a “matemática” do que os colegas que só interagiam com outras crianças do pré-escolar. Quando brincavam a cozinhar, escreviam as receitas. Quando brincavam a festas de aniversário, punham etiquetas nos presentes. Quando brincavam aos bebés, liam histórias de dormir. Noutro estudo, os investigadores analisaram crianças entre quatro e dez anos de idade a brincar juntas e encontraram o mesmo: os mais velhos instruíam os mais novos a dar “sete gotas de medicamento” ao boneco, explicavam o preço de itens na loja de brincar e quanto teriam que dar de troco, introduzindo conhecimentos considerados curriculares sem o formalismo da sala de aula.
Este tipo de influência também pode partir dos adolescentes. Estes demonstram capacidade de adaptar as suas formas de estar de modo a permitir a participação dos mais novos, por exemplo, atirando a bola mais devagar para que os pequenos consigam apanhar, dando pistas para que os mais novos prestem atenção e pensem com estratégia em jogos de cartas, ou inventando regras novas para refrescar uma brincadeira em curso. Este contacto estimula os mais novos a desenvolver as suas formas de pensar e de se organizar a níveis que, sozinhos, não lhes ocorria alcançar.
As crianças mais velhas enquanto modelos
Ao mesmo tempo, os mais velhos funcionam como modelos para os mais novos. Segundo David Lancy, citado neste estudo, “A mais importante forma de aprendizagem é a observação”, e o autor assinala que, nas culturas mais tradicionais, pouco da aprendizagem ocorre formalmente; as crianças aprendem sobretudo por exemplo. Ao contactarem com crianças mais velhas e com adultos, os mais novos absorvem comportamentos, linguagens, argumentos, que depois incorporam nas suas brincadeiras e conversas. A observação de crianças mais velhas a ler livros, trepar a árvores ou jogar à bola também nutre o desejo de fazer essas mesmas coisas, estimulando a motivação para aprender e para crescer. É frequente observar crianças pequenas simplesmente a observar crianças mais velhas com atenção intensa, e muitas vezes essa observação é seguida de uma tentativa de fazer o mesmo, por si próprias ou pedindo ajuda aos que observaram. Esta aprendizagem por observação, que é natural e própria, fica definitivamente vedada quando separamos as crianças por idades e as afastamos da participação na vida dos adultos.
Apoio emocional e cuidado
Os estudos de crianças com irmãos revelam que os mais velhos são frequentemente hábeis e voluntariosos em proteger e cuidar dos mais novos. Em contextos em que crianças de várias idades estão juntas, é frequente os mais novos pedirem ajuda aos mais velhos e eles acederem de forma voluntária, também mediando conflitos, ensinando estratégias diplomáticas para resolver problemas, felicitando-os pelos seus feitos ou lembrando-os das regras.
Benefícios da brincadeira mista nas crianças mais velhas
Peter Gray sustenta que os efeitos benéficos da brincadeira entre crianças de várias idades se fazem sentir nos dois sentidos. As crianças mais velhas têm oportunidade de praticar o cuidar e a liderança, de aprender através de ensinar, e ganham inspiração para atividades imaginativas e criativas.
Cuidar e liderar
Na presença de crianças mais novas, as mais velhas tornam-se as “grandes” e por isso podem exercer os papéis naturais de cuidador e de líder. Alguns estudos encontram aumentos nas medições de sentido de responsabilidade, empatia e altruísmo em crianças inseridas em projetos de tutoria de crianças mais novas. A investigação sugere que os mais velhos são tão atraídos pelos mais novos como o contrário, o que pode funcionar como forma de desenvolver competências parentais e de liderança que são necessárias na vida adulta. As observações de interações entre crianças de idades diferentes também mostra que os mais velhos ajudam os mais novos a cumprir as regras, por vezes zangando-se com eles se não cumprem, o que lhes permite interpretar e racionalizar as regras a que eles próprios estão sujeitos.
Aprender ensinando
Do mesmo modo, a interação com crianças mais novas dá oportunidade às mais velhas para ensinar, e são comuns os estudos que revelam que isso leva a que ambos os intervenientes compreendam melhor os conceitos. Ao explicar, os mais velhos são obrigados a estruturar e a verbalizar o conhecimento que tinham de forma implícita, e a traduzi-lo em termos que os mais novos possam compreender, e isso robustece os seus conhecimentos e torna-os mais claros para eles próprios.
Inspiração e criatividade
Este estudo argumenta também que a brincadeira que envolve crianças de idades diferentes é mais criativa e menos orientada para a competição. Entre crianças da mesma idade surgem frequentemente competições de vários tipos, e isso interfere com a brincadeira. Pelo contrário, quando há várias idades, o foco passa de ganhar para se divertirem: não há glória em ganhar ao pequenino, nem há expectativa de ganhar ao grandalhão, por isso as crianças brincam mais alegremente, de forma mais relaxada, modificando as regras para que a brincadeira seja divertida e desafiante mas possível para todos. Esse modo de estar estimula mais a criatividade e a predisposição para a experimentação do que o modo competitivo.
Ao mesmo tempo, as crianças mais velhas que, tipicamente, já não brincam a determinados jogos ou com determinados materiais (faz-de-conta, plasticina, tintas, blocos, etc.), são inspiradas pelos mais novos a revisitar essas atividades, potenciando as suas qualidades criativas.
O que concluir?
Para finalizar, o autor esclarece que não defende a desvalorização da brincadeira entre crianças da mesma idade; apenas alerta para os benefícios que brincar com crianças de outras idades oferece numa sociedade muito limitadora dessas oportunidades. O autor advoga por uma reflexão sobre as funções da brincadeira entre idades diferentes e como essas funções ainda são relevantes para o desenvolvimento infantil no presente.